RIO DE JANEIRO, EM JULHO 2016: Uma das grandes experiencias literárias deste ano para mim foi «A Hora da Estrela» de Clarice Lispector. Talvez tenha sido uma boa coinciedencia que eu estivesse no Rio de Janeiro quando li. Mas esse pequeno romance é um «aperitivo» que muitos noruegueses podem apreciar. Aquilo que os jornalistas nao conseguem passar do Brasil, este pequeno livro de 77 páginas consegue.
A mídia norueguesa mostra muito e com sensacionalismo assuntos do Brasil ultimamente. Não são todos que conseguem entender que o Brasil só continua a ser o Brasil. Um acontecimento esportivo não mudou o país. Enquanto as tropas australianas mudam-se de volta à cidade olímpica, eu aproveitei o dia para um tour no centro histórico do Rio. O que eu percebi foi que que – de fato – agora as coisas estão ficando prontas em tempo record, proteçoes e cercas já estão sendo retiradas e na semana passada não eram ainda os Jogos Olímpico, certo? Aquilo que não ficar pronto pode ser coberto com murais e pinturas criativas. Isso é o Brasil. Sim, eu sei que é dificil se acostumar com isso. Talvez tenhamos canos de esgoto melhores na Noruega, mas quando o assunto é entender outras culturas, ficamos um pouco para trás.
Clarice e Ulísses no Leme. É o cão de Clarice, que era obcecado em comer pontas de cigarro deixadas pela dona, que vai guiando as perguntas através do livro.
Na Livraria da Cultura – um antigo cinema – deparei com a nova série Antiprincesas, na seção infantil. Uma série de livros factuais latino-americanos que seria o oposto dos livrinhos infantis cheios de rosas e glitters, dando às criancas uma introdução de pessoas que foram bem-sucedidas exatamente por não terem trilhado o caminho de principes ou princesas dos contos de fadas. Frida, Violeta e Clarice são os primeiros da série. Eu pego logo o livro da última. Clarice viveu como esposa de diplomata na Europa por muitos anos, mas odiava ser «princesa» e decidiu voltar ao Brasil para se tornar uma difícil e engajada escritora. Aqui no livro, tambem podemos ver e conhecer muito sobre seus outros projetos literários. E é um livro que atrai as crianças brasileiras, nao só os adultos. Eu fico me perguntando, meio malvado, se as crianças norueguesas teriam lido e se interessado se houvesse um livro sobre Knut Hamsun, por exemplo. Eu duvido.
Há muita besteira comercial aqui no Brasil. Os programas infantis na TV são quase grotescos. Mas realmente dito, voce pode esquecer o mito das mulatas sambando nas ruas e dos garotos roubando carteiras – a não ser que voce vá procurar por ambos, o que muitos turistas no Rio de Janeiro fazem. Acho as crianças aqui muito melhor criadas do que na Noruega. Aqui podemos passar por um grupo de jovens nas ruas sem medo, um pouco diferente do que seria nos bairros nobres de Oslo. Um povo que acorda cedo e gasta horas para ir e voltar ao colégio não tem tempo a perder. Um povo que não pediu pelas Olimpíadas, mas sim por melhor saúde, melhor transporte e mais segurança. E apesar de todas as profecias de fim dos tempos, a vida aqui continua como ela é. Com o melhor e o pior de si, tudo ao mesmo tempo.
Muito aconteceu aqui nos últimos 20 anos. Algumas decadas atrás a maioria iria pensar como Macabéa, a heroína do romance, querendo ser uma estrela de cinema ou modelo. Jogador de futebol. Mas hoje em dia pergunto aos filhos dos meus amigos brasileiros e – independentemente de classe social – querem ser advogados, médicos e economistas. Ou outra coisa que dependa de educação específica. Como a minha amiga Ângela faz. Nos últimos dez anos ela tem ajudado na limpeza e manutenção da minha casa aqui no Rio. Sempre temos boas conversas. Ângela é uma das pessoas que me ensinou muito sobre o que é a vida do país por debaixo das superfícies que brilham. Ângela trabalha em duas residências e estuda de noite, está no terceiro ano. Ela está se especializando como chefe de cozinha e já conseguiu um estágio num hotel de luxo em Copacabana, que ela vai conseguir mantendo ainda os dois empregos. Ela quer ascender, ela quer crescer. Como a maioria dos brasileiros, Ângela sente vergonha dos políticos lá do Planalto. Mas tendo tantas coisas a fazer em um dia em que 24 horas passam tão rápido, é melhor não gastar a cabeça pensando em coisas que não oferecem muita esperança. Ela já gasta algumas horas apenas no ir e vir entre casa e emprego. No tempo livre ela assiste aos mesmos programas de TV que eu assisto, ou apenas passeia pelas páginas do Facebook. Ângela veio da mesma parte do pais que veio a heroína Macabéa do romance de Clarice Lispector. E agora estamos de volta ao assunto: minha experiência literária com «A hora de Estrela».
Talvez eu tenha ficado mais impressionado pelo fato de eu ter lido enquanto estava no Rio de Janeiro – e pude fazer caminhadas nos lugares em que se passavam no livro. Mas esse pequeno romance se sustenta por si próprio. O livro mostra o que jornalistas do meu país nunca conseguiram mostrar com clareza.

«Clarice Lispector para meninas e meninos», escrito por Nadia Fink e ilustrado por Pitu Saá. Traduzido do espanhol por Sieni Maria Campos. «Stjernens time» foi lançado na Noruega pela editora Bokvennen em 2015, traduzido por Ida Munck.
A jovem Macabéa veio de uma área pobre, do estado do Alagoas, para tentar a sorte no Rio de Janeiro, ainda nos anos 70, quando o Brasil era uma ditadura. Macabea tem sorte e consegue um emprego de datilógrafa num escritório no centro do Rio. Mesmo tendo sobrevivido uma criação difícil junto a sua solitaria tia. Ela nunca se vê nua no espelho por se envergonhar. E mesmo que ela não tenha a beleza que achava necessária, ela consegue um namorado. Ele se chama (coincidentemente) Olímpico. Olímpico mente sobre seu passado para se tornar uma pessoa mais atrativa, o que não é muito anormal na sociedade daqui. Assim como sonha Macabea em se transformar numa estrela de cinema, como Marilyn. Algumas vezes ela chega mais perto do seu sonho, quando ela consegue beber uma coca-cola.
Macabéa e Olímpico andam de mãos dadas, se beijam e trocam frases sem muito conteúdo, uma vez que nenhum dos dois tem muito assunto a falar. E como Macabéa foi criada para acreditar que a relãção homem-mulher era uma coisa desprezível, Olímpico procura se satisfazer das lacunas abertas com a mais voluptuosa Gloria. Como disse Clarice Lispector: não se reclama quando não tem ninguém para ouvir a reclamação. Isso ainda aconteceu nos anos 70, e por isso, bem pior do que hoje em dia. Abandonada e sozinha, a jovem heroína vai a uma cartomante – o que ainda hoje algumas pessoas fazem no Brasil quando em dificuldades. A cartomante, após um pequeno pagamento, conta a Macabéa que ela vê no seu futuro uma grande mudança, que ela se transformará numa estrela. Mostra-se que a hora da estrela virá de maneira inusitada e que Macabea finalmente terá a esperada sorte, – mas não vamos dizer logo aqui o final…
O narrador é um escritor masculino. O escritor ficticio conta como a personagem principal chega a ele num momento em que ele vê um toque de tristeza nos olhos de uma jovem mulher. A história se combina com a voz da própria escritora Clarice Lispector. Bonito, intelectual e majestoso ao mesmo tempo. Pode ser que a voz que ouvimos , ditas pela voz do escritor ficticio Rodrígo SM, seja a voz de Clarice Lispector dizendo: O que escrevo é mais do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça entre milhares delas. E dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe a vida. Porque existe o direito ao grito. Então grito.
Ainda garota, Clarice escrevia histórias que nunca terminavam, mesmo quando a personagem principal morria. Ou como mostra no livro Antiprincesa: sabia que Clarice Lispector frequentemente acaba um texto de uma maneira que o leitor pode dar sua própria continuidade?